quinta-feira, 17 de setembro de 2009

VIDA QUE SE MOVE

A BAILARINA E COREÓGRAFA ALEMà PINA BAUSCH TRAZ AO PAÍS “PARA AS CRIANÇAS DE ONTEM, HOJE E AMANHÔ, ESPETÁCULO EM QUE BUSCA REENCONTRAR OS SONHOS DA INFÃNCIA.
POR FERNANDO EICHENBERG, DE PARIS.

Criança, a bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch costumava permanecer acordada até tarde da noite e passava boa parte do tempo sob as mesas do café-restaurante do pequeno hotel administrado por seus pais, August e Anita, na cidade de Solingen, onde nasceu. De seu semi-esconderijo, observava atentamente as relações em sua intensidade cotidiana: encontros e desencontros, casais que brigavam ou se apaixonavam, a força do amor que podia provocar mal-entendidos, a atração repentina ou mesmo a perda de um emprego. “Havia tantas pessoas, tantas coisas estranhas se passavam, a vida acontecia”, disse certa vez.
A menina cresceu e, do assoalho para as novas dimensões da vida adulta, suas perspectivas do mundo se ampliaram. Como coreógrafa, Pina Bausch revolucionou a arte da dança contemporânea do século 20 e se impôs nos palcos internacionais com um estilo próprio de dança-teatro, o seu tanztheater. A menina de Solingen e a hoje artista de 66 anos recém-completados guardaram pelo menos um traço em comum: o interesse pela condição humana. “Tudo é tão forte. Eu gosto de olhar, sentir as coisas, e dar uma forma a tudo isso por meio de meu trabalho, deixar a vida e o amor emergir”, diz em entrevista a BRAVO!, num final de manhã em Paris, a silhueta esguia e longilínea acomodada numa das poltronas da platéia deserta do Théâtre de la Ville, escala da turnê de seu espetáculo Rough Cut.

A vida condensada em suas conexões humanas, com suas ambivalências, imperfeições, sofrimentos e alegrias é o leitmotiv das criações de Pina Bausch, encenadas pela sua companhia Tanztheater Wuppertal, com sede na pequena Wuppertal, uma cidade chuvosa do vale do Ruhr, próxima a Colônia. Conhecida do público brasileiro por diferentes turnês e mesmo um período de residência no país, que inspirou o espetáculo Água (2001), a coreógrafa traz a São Paulo e Porto Alegre mais um de seus trabalhos, Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã (2002).
A coreografia não é sobre crianças, mas uma tentativa de reencontrar por meio delas a imaginação, os sonhos e a credibilidade da infância. Em meio ao cenário composto de três imensos muros brancos, móveis e perfurados por duas grandes portas, 14 bailarinos dançam, brincam e se arriscam de forma ao mesmo tempo perigosa e lúdica em contrapontos ente o imaginário infantil e a difícil passagem para a vida adulta. “Crianças são tão sensíveis, frágeis. Não tenho palavras para o sofrimento delas em tantas partes do mundo. Experiências que provavelmente não desaparecerão tão facilmente”, diz. Mas, fiel ao seu otimismo-realista, ela abre espaço para um futuro menos dolorido: “Como podemos continuar com isso, como podemos manter a esperança? Se você puder rir já é algo, uma esperança”.

A EXPRESSÃO DO COTIDIANO

A formação de Pina Bausch inicia aos 14 anos, na Escola Folkwang de Essen, dirigida pelo célebre coreógrafo Kurt Joos, um dos fundadores do movimento de dança expressionista alemão, que combinava música e encenação dramática. Em 1959, embarcou sozinha num navio rumo aos Estados Unidos, admitida num programa de intercâmbio de estudantes. Na Juilliard School of Music de Nova York, onde permaneceu dois anos, estudou com nomes importantes da dança como Antony Tudor, José Limon ou Paul Taylor. Na mesma época, dançou com as companhias de Paul Sanasardo e Donya Feuer e integrou o New American Ballet e o Metropolitan Opera Ballet. De volta à Alemanha, em 1962, dançou como solista no Folkwang Ballet, até realizar sua primeira coreografia, Fragment, em 1968. Em 1972, aceitou a direção do Wuppertal Opera Ballet, mais tarde rebatizado de Tanztheater Wuppertal Pina Bausch, berço de suas singulares criações.
Uma de suas frases é constantemente lembrada para definir um dos pilares de seu trabalho: “Não me interesso em como as pessoas se movem, mas no que faz elas se moverem”. Pina Bausch cavou seu próprio afluente da Audrucktanz, a “dança expressiva”, estilo bastante popular nos anos 20 que busca o gestual cotidiano para exprimir experiências pessoais, e desaguou na sua dança teatralizada. Suas versões das Óperas de Gluck Ifigênia em Táuris (1974) e Orfeu e Eurídice (1975) acentuam a carga dramática em detrimento da narração, e sua montagem de O Barba-Azul (1977), livre criação da ópera de Bela Bartók, é considerada um marco em direção á força teatral de suas coreografias.
Café Müller, baseado em memórias paternas, Kontakthof (ambas de 1978) e Nelken (1982) são três de seus espetáculos conhecidos que apontam para os contornos de sua obra: solidão, incomunicabilidade, violência, nostalgia, melancolia, afeto, amor e felicidade formam mosaicos no décor povoado ou desabitado, estático ou em movimento, silencioso ou musicado de suas criações. Suas peças provocam, instigam sem fornecer respostas, e privilegiam a emoção por meio da estética e do drama. “Quando vou assistir a uma peça, quero sentir algo. Não quero só estar lá, ver o que vai ou não acontecer. Eu vou para ver e sentir”, afirma. Para fazer sentir, ela utiliza relações de ritmo e de humor com recursos coreográficos e teatrais, solos ou curiosos esquetes, elementos naturais (água, areia, grama, flores) misturados aos corpos dos bailarinos em paisagens projetadas pelo cenógrafo Peter Pabst, sucessor do falecido Rolf Borzik.

RESIDÊNCIAS

A partir da década de 1980, o laboratório de criação de Pina Bausch expandiu fronteiras. Estágios de pesquisa em diferentes cidades e países passaram a alimentar suas inspirações. O método de residência foi inaugurado com Viktor (1982), em Roma, e prosseguiu com Palermo, Palermo (1989), em Palermo e Sicília; Tanzabend II (1991), em Madri; Uma Tragédia (1994), em Viena; Nur Du (1996), em Los Angeles; O Limpador de Vidraças (1997), em Hong Kong; Masurca Fogo (1998), em Lisboa; O Dido (1999), novamente em Roma; Wiesenland (2000), em Budapeste; Água (2001), no Brasil; Nefés (2003), em Istambul; Tem Chi (2004), no Japão, e Rough Cut (2005), na Coréia do sul. A próxima fonte de uma futura criação será a Índia, com viagens programada para Calcutá e a região de Kerala.
“Quando fizemos isso pela primeira vez, estava assustada e me perguntava ‘de que forma se pode fazer algo sobre Roma’. No início, eu era contra, mas acabei me deixando integrar, ver o que acontece. E foi uma experiência incrível, tantas portas se abriram, a música, as pessoas, situações, você entra em tantas coisas. E fiquei totalmente surpresa com o que surgiu, meu desejo era o de continuar em todas as direções”. A excitação provocada, no entanto, sempre vem acompanhada de uma forte apreensão; “É aterrorizante, porque não sabemos o que estamos fazendo. É chegar e ver o que acontece. Eu sofro muito, pois sei que o que acaba saindo é uma parte muito pequena do todo. E temos uma data de estréia marcada, mas não há peça, não há música, não há set, só há nós, a companhia e a vida. Eu me ponho muito aberta, e procuro coisas como uma criança. Eu me divirto, é bonito, mas dá medo”.
A ansiedade precede todo trabalho seu, pois, no início de cada criação, ela confessa nunca saber para onde esta indo. “Sinto angústia, é algo sério. Mas de alguma forma sei o que estou buscando, embora não em imagens ou palavras. Mas há esse sentimento, porque de repente uma pequena coisa aparece e sei que pertence á imagem que procuro. Mas como explicar? É tão delicado, tão íntimo. Não saberia encontrar a palavra certa para isso. Então não digo nada. Prefiro apenas ter a esperança em algo”. Bailarina e coreógrafa, Pina Bausch aprecia sonhar, mas com os pés no chão: “Sou uma otimista, mas não sonhadora, sou realista. Talvez eu deseje muito, mas no domínio do possível, do que pode acontecer”.

ONDE E QUANDO

Para as Crianças de Ontem, hoje e Amanhã. Direção artística e coreografia de Pina Bausch. Cenografia de Peter Pabst, figurino de Marion Cito. Música de Félix Lajko, Naná Vasconcelos, Caetano Veloso, Bugge Wesseltoft, entre outros. São Paulo: Teatro Alfa (rua Bento branco de Andrade Filho, 722, tel. 0++/11/ 5693-4000). 2ª a sáb., às 21h; dom, às 18h. De 28 a 31/8 e 1° a 3/9. R$ 30 (setor 4), R$ 100 (setor 3), R$ 150 (setor 2) e R$ 200 (setor 1). Mais informações: www.teatroalfa.com.br. Porto Alegre: Teatro do Sesi (av. Assis Brasil, 8.787, tel. 0++/ 51/ 3347-8786). 5ª e 6ª, ás 21h. Dias 7 e 8/9. R$ 20. Estudante paga meã entrada. Mais informações no site www.poaemcena.com.br.

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