quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Vaia Inaugural


BRAVO! Setembro/2009

Os apupos na estreia de "A Sagração da Primavera" são um marco das vanguardas artísticas. Depois de chocar, o balé se tornou um clássico - e inspirou coreógrafos como Pina Bausch, cuja companhia traz a obra ao Brasil


Por Gabriela Mellão






"Não se podia, durante todo o espetáculo, ouvir o som da música", anotou a escritora Gertrude Stein sobre a vaia que estabeleceu o 29 de maio de 1913 como o dia D da arte de vanguarda. Nessa data, em Paris, estreou o balé A Sagração da Primavera, com música de Igor Stravinsky e coreografia de Vaslav Nijinsky. Gertrude Stein estava lá, assim como o escritor e cineasta Jean Cocteau, que registrou: "Ali, para quem soubesse ver, estavam todos os elementos de um escândalo". Como escreveu o crítico musical Alex Ross, da revista The New Yorker, no livro O Resto É Ruído, escândalos como esse ocorriam de seis em seis meses na Paris dos anos 10, em que criadores da nascente vanguarda encenavam peças, escreviam músicas ou pintavam quadros destinados a sacudir e a chocar os conservadores. Nenhuma vaia, no entanto, ficou tão marcada na história da arte quanto a destinada à Sagração, talvez pelos desdobramentos posteriores. A peça de Stravinsky se tornou uma espécie de certidão de nascimento da música moderna. A coreografia de Nijinsky revolucionou a dança. E artistas como Gertrude e Cocteau, que estavam na plateia, se viram para sempre impregnados do espírito demolidor da Sagração - a obra de toda uma geração nascida na época atesta isso.





Depois do choque inicial da estreia, apresentada pela companhia Ballets Russes, do empresário Sergei Diaghilev, A Sagração foi aos poucos caindo no gosto do público. E se tornou - expressão paradoxal - uma espécie de "clássico da vanguarda". Os mais importantes coreógrafos do século 20 visitaram a partitura de Stravinsky e, cada um a seu modo, se impregnaram de sua música de ritmo irresistível, em que as cordas e sopros da orquestra fazem as vezes de instrumentos de percussão. Nessa aventura se lançaram nomes como o francês Maurice Béjart, em 1959, e a americana Martha Graham, em 1984. Uma dessas versões - a da coreógrafa alemã Pina Bausch, morta em junho último - volta a ser apresentada no Brasil neste mês, num programa que inclui Café Müller, com a companhia Pina Bausch Tanztheater Wuppertal.


Na versão original, os dançarinos contorciam-se e tremiam em espasmos no palco, seguindo a complexa estrutura politonal e dissonante da composição de Stravinsky. Com cabeças e pés torcidos, braços dobrados na lateral, mãos abertas e rígidas, os bailarinos levavam o grotesco ao palco para contar a história da jovem - a "eleita" - que precisa ser sacrificada em oferenda ao deus da primavera (a história do balé se baseia numa antiga lenda russa). Para elaborar os tremores e as contorções dos bailarinos, Nijinsky tomou como base a técnica de eurritmia desenvolvida pelo músico-educador suíço Émile Jacques-Dalcroze. Segundo ele, todo ritmo podia corresponder a uma livre criação motora.


Na Sagração da Primavera, os dançarinos golpeiam o solo com os pés, contrariando as regras clássicas segundo as quais os bailarinos, com sapatilhas de ponta, precisam "flutuar". No fim, acontece um dos solos mais longos e exigentes da dança moderna: a eleita, então imóvel, exterioriza com contorções seu terror diante da morte. Ela acelera seus movimentos até a convulsão final, quando gira sobre si mesma, cai morta e é erguida ao céu, em oferenda ao deus da primavera.


Criados pelo pintor e arqueólogo Nicholas Roerich, a cenografia e os figurinos ainda eram bastante suntuosos: no fundo do palco, um imenso painel retratava a paisagem do interior da Rússia. Já os figurinos, pesados, imitavam roupas de camponeses com vestidos longos, rostos pintados e uma série de adereços.


A primeira grande releitura da Sagração da Primavera ficou marcada, justamente, por tornar mais econômicos os recursos de cena, ao mesmo tempo em que retirava a história do contexto regional russo. Em 1959, com 32 anos, Maurice Béjart consagrou-se com uma coreografia despida de adereços pitorescos e um elenco formado por bailarinos das mais diferentes etnias, transformando a história num hino ao amor universal e apresentando a união profunda entre homem e mulher. Para Béjart, o encontro carnal entre um homem e uma mulher simboliza, também, a união do céu e da terra, a dança de vida e morte - "eterna como a primavera", como ele dizia.





Nessa época, Martha Graham já era um nome consagrado. Contudo, ela só iria fazer sua versão da Sagração 25 anos depois, aos 90 anos. Como Béjart, ela retirou a coreografia do contexto original. Fez uma versão contemporânea do ritual da fertilidade, investindo nos movimentos vigorosos, por meio das técnicas de contração e relaxamento do corpo pelas quais ela se celebrizou. Seus dançarinos vestem sungas, tornozeleiras e munhequeiras pretas. Os homens saem de cena carregando as mulheres nos ombros, compondo um retrato da fragilidade da mulher na sociedade patriarcal.


Essa abordagem da condição feminina também é uma característica da coreografia de Pina Bausch. Criada em 1975, quando Pina iniciava sua trajetória à frente da Tanztheater Wuppertal, ela também se afastava dos rituais da Rússia antiga. No lugar da representação do rito na natureza, concentrou-se no terror do homem diante da morte. "Pina aborda esta fábula do ritual para trabalhar as relações humanas, tema investigado em toda a sua trajetória", diz Cássia Navas, pesquisadora de dança da Universidade de Campinas (Unicamp) e consultora do Teatro de Dança. Em cena, os movimentos são violentos, evocando a força da chegada da primavera. A criação explora os sentimentos que a partitura da Sagração provocaram em Stravinsky, "uma convulsão imensa, como se toda a terra fosse sacudida em determinado momento".

A batalha entre vida e morte concebida por Pina Bausch acontece sobre um palco coberto de lama, representando uma arena arcaica. Aos poucos, a lama se aloja nos pés descalços, nas calças pretas e nos peitos nus dos bailarinos, nas camisolas transparentes, cor da pele, das mulheres. Em cena, um casal se destaca dos demais - fisicamente e pela diferenciação do figurino: a mulher veste camisola vermelha. Após uma dança frenética do coro, em movimentos que trabalham braços e pernas semiflexionados e buscam a terra ao mesmo tempo em que expressam grande tormenta, o casal em destaque se divide. O homem junta-se aos demais, deixando sua companheira solitária, entorpecida pelo medo.


"A Sagração da Primavera foi um divisor de águas não só para a dança, mas para a história da arte", diz a pesquisadora Cássia Navas. Para Luis Arrieta, coreógrafo e bailarino argentino radicado no Brasil que encenou sua própria versão da obra em 1985, a música de Stravinsky é "dotada de força e essencialidade incomuns". Segundo ambos, de Nijinsky a Pina Bausch, a ênfase na sexualidade sempre foi uma constante, com movimentos pélvicos, violentos e curvados, dotados de extrema intensidade. "Cada coreógrafo abordou a força primordial da vida na sua criação, situando-a na sua cultura, na sua história, no seu tempo. E todos endossaram os gestos primeiros de Nijinsky", diz Arrieta.


Maurice Béjart, Martha Graham e Pina Bausch foram, cada um a seu modo, inovadores na arte da dança. A alemã chegou a promover uma verdadeira revolução na linguagem ao aproximá-la da arte teatral. Nos primeiros anos de sua carreira, muitos bailarinos se recusaram a trabalhar com ela, e, em suas primeiras peças, pessoas saíam do teatro batendo as portas. Aos poucos, no entanto, a arte inovadora desses três criadores foi entendida e absorvida ao longo de um século - o 20 - em que a vanguarda se tornou o mainstream. No dia 29 de maio de 1913, a vaia mostrou que Stravinsky e Nijinsky estavam no caminho certo - o da contestação. Estabelecido o mito inaugural da vanguarda, vários artistas certamente sonharam com uma vaia assim. Já há algum tempo, no entanto, ela não é mais possível - e o fato de Martha Graham, Maurice Béjart e Pina Bausch nunca terem sido apupados por suas Sagrações é uma prova disso.


Gabriela Mellão é jornalista e dramaturga, autora da peça Minha Loucura É o Amor da Humanidade.



ONDE E QUANDO

Café Müller e A Sagração da Primavera. Coreografia de Pina Bausch. Com Pina Bausch Tanztheater Wuppertal. Teatro Alfa (rua Bento Branco de Andrade Filho, 722, Santo Amaro, São Paulo (tel. 0++/11/5693-4000). Quando: 5a e sáb., às 21h, e sex., às 21h30. De 24 a 26/9. De R$ 40 a R$ 200.

BRAVO! Setembro/2009

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