quinta-feira, 17 de setembro de 2009

PINA BAUSCH ERGUE SUA BABEL

Por Fabio Cypriano, em Estocolmo.
BRAVO! Outubro / 1998.

“Eu não me interesso em como fazer um movimento, mas em porquê”. A frase da coreógrafa Pina Bausch é a síntese perfeita de sua obra, consolidada em 25 à frente do Tanztheater Wuppertal, na Alemanha. A data é comemorada neste mês com uma grande festa, que durante 20 dias vai reunir várias companhias, entre as quais a belga Rosas, o bailarino Mikhail Baryschnikov, grupos de hip-hop alemães e franceses e até o cantor Caetano Veloso. Todos os artistas vão se apresentar sem cobrar cachê, como um presente a Bausch.

A variedade dos convivas, que à primeira vista pode parecer inconciliáveis, retrata com fidelidade a personalidade da coreógrafa, que transformou os rumos da dança no século 20. O seu gosto pela diversidade se reflete também na origem dos 25 bailarinos da companhia, vindos de 15 países diferentes. No palco, eles cantam, respiram, choram, arremetem contra a parede e falam, muitas vezes em sua língua natal. Por isso é comum escutar textos em português, graças às presenças das bailarinas brasileiras Regina Advento e Ruth Amarante.

É claro, os bailarinos também dançam – sobre terra, água, flores, grama, granito, tijolos, porque, diz Bausch, “eu gosto de ver a interferência desses elementos orgânicos no movimento” -, ainda que na dança-teatro da coreógrafa o importante não seja apenas a dança. Bausch trata, em suas 30 peças à frente da companhia Wuppertal, de questões existenciais, como a solidão, mas também o amor e a alegria: afinal, diz ela, é preciso contrabalançar a tristeza do mundo. Além dos temas, os cenários deslumbrantes, mas simples, sem o uso de recursos tecnológicos sofisticados, põem o bailarino em primeiro plano, construindo um teatro centrado essencialmente no humano. Foi sobre esse trabalho, a festa de 25 anos e a possibilidade de criar uma peça sobre o Brasil que pina Bausch falou, com exclusividade a BRAVO!, em Estocolmo, durante a temporada de seu grupo na capital cultural da Europa de 1998.

BRAVO!: Há planos de o tanztheater Wuppertal fazer uma co-produção com o Instituto Goethe, de São Paulo, sobre a capital paulista?
Pina Bausch:
De fato, alguém teve essa idéia, não sei exatamente quem, mas eu gostaria muito de poder fazer algo sobre o Brasil. É uma linda possibilidade, ainda não muito realista, porque não temos dinheiro para isso. Seria interessante se pudéssemos fazê-lo no ano 2000, em virtude das comemorações que serão realizadas no Brasil, mas já não é mais possível, pois fazemos uma co-produção com a cidade de Budapeste. Talvez seja possível para 2001. É uma proposta que eu gostaria de concretizar – passar um tempo no Brasil criando uma peça. São Paulo é uma cidade de que gosto muito.

A sua festa de 25 anos à frente do Tanztheater Wuppertal reúne artistas que vão desde baryschnikov a grupos de hip-hop franceses e alemães. Como a sra. Classifica essa variedade de convivas?
Eu não classifico nada em minha vida. É apenas uma festa de parte do que eu gosto, e eu gosto de tantas coisas... Acho que esse é um momento muito especial e por isso uma ótima razão para convidar todas essas companhias e também trazer públicos diferentes para o teatro.

Mas a sra. Ouve e vê hip-hop?
Sim, algumas vezes, quando tenho a possibilidade, em vídeo ou na televisão. É um movimento do break-dance incrível, e eles são dançarinos maravilhosos.

A coreógrafa Anne Teresa de Keersmaeker, da companhia belga Rosas, tinha uma linha de trabalho muito próxima da sua, mas agora faz um trabalho bem diferente. A sra. Tem acompanhado a carreira dela?
Nos últimos anos, não tive oportunidade de assistir aos espetáculos dela. Estamos sempre nos mesmos festivais, mês em dias diferentes. Nos encontramos às vezes, e ela já me convidou para dar aulas na escola dela (P.A.R.T.S.). É uma questão de tempo. Mas temos trabalhos muito diferentes, pois ela sempre tatua com música ao vivo, e isso influencia muito no que se faz. Eu uso música gravada, de toda parte do mundo.

Como é o processo de seleção dessas músicas?
Tenho dias pessoas encarregadas disso, especialistas em encontrar músicas. Mas a todos os meus amigos, aos bailarinos, a todo mundo pergunto sobre músicas bonitas. Contudo, a decisão é sempre minha: de faço, eu faço a música.
Na festa também estará presente Caetano Veloso, mas não há músicas dele em suas peças.
Ainda não (risos).

Mas há alguma canção dele em especial que a senhora tenha em vista?
Há tantas canções especiais! Nos encontramos pela primeira vez no ano passado, no Rio de Janeiro, e ele foi muito aberto a toda a companhia. Seria ótimo tê-lo em nossa festa.

A sra. Participou do filme E La Nave Vá, do diretor italiano Federico Fellini. Como foi a experiência?
Ele assistiu a várias peças e um dia disse que queria me convidar para participar do filme. Não acreditei que ele tinha me escolhido, pois há tantas mulheres lindas na companhia. Mas ele realmente queria a mim. Tempos depois eu entendi o porquê: Fellini me deu um de seus desenhos – ele sempre desenhou previamente as cenas – e, de fato, ele já havia me desenhado antes de nos conhecermos. Quando me viu, ficou claro que era de mim que ele precisava, pois, sem me conhecer, já havia me desenhado.
É uma incrível coincidência, pois sua personagem no filme é uma princesa cega, e isso acontece justamente depois da criação da peça Café Muller, em que a sra. dançava de olhos fechados!
Eu acho que foi uma enorme coincidência, mas não sei exatamente, pois ele não mostrava o script antes das cenas, apenas durante a maquiagem e, se algo o inspirava, ele alterava durante a gravação, o que chegou a acontecer comigo.



Mas ele dava espaço para improvisações, como a sra. faz, na criação?
Não, de forma alguma. Ele mostrava exatamente como queria que as cenas fossem feitas. Eu não sabia, no começo, como ele trabalhava e me surpreendi com isso! Ele dizia apenas no local das filmagens como as pessoas deveriam atuar.

A sra. já disse que cria peças pra falar sobre algo que tenha urgência. Sua peça mais recente, Mazurca Fogo, Trata essencialmente de amor, romantismo, alegria. É sobre esses sentimentos que a sra. acha urgente falar agora?
A questão é: do que o mundo precisa hoje, do que precisamos? Bem, eu fico tímida ao falar das minhas peças, do que faço, as claro que esses temas não surgiram por coincidência. Tudo é muito pensado, e reflete energias, sentimentos que estão juntos. Para mim pe o que realmente é necessário, ver certas ironias, rir de alguma coisa, ter um certo prazer. Estamos num terrível, tenebroso, sério e assustador momento. Então, procuro dar um pouco de balanço, de compensação a tudo isso.

Numa apresentação de O Limpador de Vidraças, uma criança de 7 anos divertiu-se o tempo todo, rindo, cantando, dançando. A sra. defende o teatro como m espaço para trazer nossas recordações de infância...
Sim, afinal nossa infância é nossa história. De fato, nossa infância é importante para nós, para cada um de nós, mas as peças não são sobre mim, e sim sobre nós. Pode-se assistir a elas por tantos lados, ao há um caminho: assista assim ou dessa forma. Deve-se estar livre, e confiar em si próprio, no que se seta sentindo quando se vê a peça. E, quando se vê mais vezes, ela muda, da mesma forma que mudamos nossos sentimentos, e isto se reflete na visão. Eu acho que uma peça deve ser tão aberta para mim quanto para os outros, para que cada uma possa construir sua própria peça nela.

A sra. assiste a todas as suas apresentações de sua companhia, o que a impede de aceitar convites para coreografar outros grupos. Qual a razão de sua presença permanente?
Eu mesma não sei exatamente, mas para mim isso sempre foi necessário. Alguém têm de estar lá para cuidar das peças, dos detalhes, há sempre milhões de detalhes. Senão, as produções vão mudado pouco a pouco. E também há diferentes palcos, teatros, e em cada lugar precisamos nos sentir como em casa, que é o nosso lugar. E nunca encontrei ninguém que pudesse cuidar disso. Além do mais, eu acho que foi o meu sentimento que organizou as peças e por isso tenho de estar lá, fazendo as críticas. E todo mudo trabalha tanto, que ‘tomar conta’ é muito importante. Tomar conta é sempre necessário, seja numa relação de amizade ou em qualquer outra.

Mas a sra. aceitou o convite para dirigir uma ópera, em julho, no mais recente estival de Aix-en-Provence.
Sim, durante as minhas três semanas de férias! Mas foi um convite irrecusável do Pierre Boulez, um maestro fantástico. E ele me propôs fazer O Barba-Azul, o que foi uma honra inacreditável. Sempre quis encontrá-lo e estar em contato com ele, o que foi muito bonito. Antes, O Barba-Azul tinha alguns cortes, e pela primeira vez foi apresentado na íntegra. E, em verdade, me pareceu uma obra completamente diferente, com um homem tão diferente, um Barba-Azul tão bom, Istoé, no que ele pode ser bom, uma pessoa tão triste, nem parecia o Barba-Azul.

E qual a diferença na montagem do Barba-azul que a sra. criou em Wuppertal, em 1977?
Quando fiz O Barba-Azul com o Tanztheater Wuppertal usei um gravador em cena que podia reproduzir a música alta ou baixa, ou mesmo voltar várias vezes. Na ópera, tive de aprender um monte de coisas como: não fazer muito barulho em cena para não atrapalhar a orquestra, ou que os cantores querem olhar para o público. Foi como fazer uma série de acordos. E o tempo de preparação foi um pouco curto, apenas três semanas.



Pelo processo de criação que desenvolveu, a sra. consegue obter de cada bailarino aquilo que ele sabe fazer de melhor. Como é esse processo?
Eu tenho com cada um uma relação muito especial, baseada no respeito. Mas explicar o processo é muito difícil. Pode-se falar de uma forma técnica o que faço, mas a real intenção pela qual escolho uma cena não tem explicação. E, quando vejo algo que me agrada, é como se isso já pertencesse ao que eu procurava, é o que eu queria ver. Também sempre há coisas que me deixam insegura: quando começo uma peça, nunca sei exatamente aonde vai dar. E são os bailarinos que me fornecem esse material: às vezes, uma palavra, ou mesmo uma pequena fração de movimento. Eles criam algo, e peço para repetirem apenas uma pequena parte, e eles mesmos se surpreendem com a minha escolha. É muito engraçado porque, no início, é como se eu não soubesse: já estava lá, mas não tinha forma. Mas se você me perguntar como, eu não sei.


UM TEATRO DO MOVIMENTO
Dança de Pina Bausch é nova forma de espetáculo.
Por Ana Francisca Ponzio.

Ao som de uma colagem musical que inclui Beethoven, Mozart e árias italianas antigas, cantadas por Benjamino Gigli, uma mulher vive um caso de amor com um hipopótamo. Situações como essa, moldadas para estimular a reflexão sobre as impossibilidades nos relacionamentos humanos, compõem o repertório de Pina Bausch, a coreógrafa alemã que inventou uma nova forma de espetáculo e cuja obra já é um clássico do século 20.

Em Árias, a criação de 1979 que relacionou o monumental paquiderme á condição humana, assim como em suas demais obras, Bausch explora histórias expressivas de um mundo cruel, cínico e violento, que, contudo não deixa de incluir o humor e a esperança. “De certa forma, meu trabalho é uma longa e única peça”, costuma dizer a coreógrafa que subverteu os códigos convencionais da dança para desenvolver uma linguagem teatralizada, sustentada pela expressão gestual que, mesmo quando reduzida ao mínimo de movimentos, sempre consegue tocar o essencial.

Segundo Bausch, a perda do movimento e da dança, em seus espetáculos, é apenas aparente. “Tenho imenso respeito pela dança e é por isso que a utilizo moderadamente”, ela disse à italiana Leonetta Bentivoglio, autora de um livro sobre a coreógrafa. “A dança está presente em mina obra, mas não é mostrada diretamente”. Diria que os movimentos utilizados são tão simples que nos fazem pensar que não constituem uma dança. Mas, para mim, é o inverso. Credito que á muita dança no trabalho de meus intérpretes, mesmo quando eles não se mexem”.

Rejeitando mensagens, os espetáculos de Bausch propõem questões abertas. Com sua visão subjetiva das relações humanas, ela estimula percepções diferentes de um mesmo tema como se algo pudesse ser visto de diversas formas, dependendo das circunstâncias.Com isso, a mesma obra pode adquirir múltiplos significados a cada nova apresentação. Eterna investigadora do movimento, Bausch já desafiou seu elenco a atuar em palcos recobertos por terra, água, troncos de arvores, milhares de cravos ou perante um muro que desmorona repentinamente. Ela explica que essa impressão de desordem dá os bailarinos consciência da realidade, mantendo-os em estado de atenção permanente. “Amo o real. A vida jamais se compara a um chão feito para dança, liso e seguro... Amo a relação da natureza com a dança. O passo de um dançarino sobre a grama ou sobre a terra fresca é completamente diferente, e sua maneira de ser e de se movimentar se transforma”, diz.

No vocabulário singular de Bausch, que disseminou influências e gerou legiões de imitadores, transitam elementos mais próximos do teatro do que da coreografia. Entretanto, os integrantes de seu elenco treinam rotineiramente a técnica do balé clássico, nunca utilizada como molde, mas como um recurso integrado à polivalência expressiva. Durante seus processos criativos, ela também cerca seu elenco de perguntas, relativas tanto à vida cotidiana como ao imaginário de cada um. De tais exercícios, recolhe reações particulares que, em conjunto, refletem as contradições do comportamento humano. Pouco a pouco, ela constrói uma organização dramática, marcada por ações repetitivas e narrativas descontínuas.

A atração pela subjetividade, que a faz somar a seus espetáculos as características e contribuições individuais dos bailarinos, vem de Kurt Jooss (1901-1979) – o precursor da nova dança alemã surgida no pós-guerra -, com quem Bausch trabalhou como assistente na escola Folkwang, dirigida por ele na cidade de Essen. Nascida em 1940, em Solingen, Bausch se deleitava na infância, com as pessoas e situações que observava no restaurante de seu pai. “É uma bagagem que jamais perdi”, diz. Aos 14 anos, quando ingressou na escola fundada por Jooss, ela teve a oportunidade de estudar diversas modalidades de dança, da clássica à folclórica, além de disciplinas integradas, como música, teatro, canto, fotografia, artes plásticas.



Em 1959, quando se mudou para Nova York, onde viveu durante dois anos, Pina também se encantou com o caráter multifacetado da cidade. Durante este intenso período, ela estudou na Juilliard School of Music, dançou nas companhias de Paul Sanazardo, Donya Feuer e Paul Taylor, e também fez parte dos elencos do New American Ballet e do Metropolitan Opera Ballet, na época dirigido pelo coreógrafo britânico Antony Tudor, que lhe salientou as nuances poéticas dos movimentos, mesmo sob o rigor acadêmico.

O prazer de conviver com as diversidades, ela o estendeu ao seu elenco, que reúne bailarinos vindos de diversas partes do mundo. Como os personagens de Fellini, com o qual ela trabalhou no filme E La Nave Vá, sua companhia reúne tipos singulares, que conseguem espelhar incoerências individuais e coletivas. Embora muitas vezes se limitem a falar textos desconexos, chorar, cantar e gritar, os intépretes e Bausch são, acima de tudo, bailarinos.

Por causa da relação especial que mantêm com o corpo, o bailarino, na opinião de Bausch, sabe ser natural. É por isso que ela não se interessa em trabalhar com atores, que sempre se projetam para o exterior. Bailarinos, afirma Bausch, conseguem ser eles mesmos e lidar melhor, em cena, com emoções mais autênticas. Para ela, isso garante a simplicidade – algo que ela persegue permanentemente em seus espetáculos.

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